A complexidade assusta os simplistas e preguiçosos
- Karina Paitach
- 9 de set. de 2024
- 4 min de leitura

Nos últimos anos, vivemos uma explosão do uso das redes sociais como principal espaço de debates públicos. Com isso, surgiu um fenômeno cada vez mais presente nas discussões: o pensamento maniqueísta, que reduz as complexidades da vida e das relações humanas a uma simples disputa entre "bem" e "mal". Esse tipo de pensamento binário está na base de muitos conflitos e polarizações que observamos, não só no ambiente digital, mas em praticamente todas as esferas da sociedade atual.
O pensamento maniqueísta é uma forma de enxergar o mundo em extremos, onde uma posição é absolutamente correta e a outra totalmente errada. Essa visão limitada se alimenta de discursos de ódio e simplificações perigosas, ignorando as nuances e as complexidades que fazem parte da vida em sociedade. Ele pode se manifestar de várias maneiras: na política, nas discussões sobre gênero, economia ou até em questões cotidianas. O grande problema do pensamento maniqueísta é que ele distorce o entendimento da realidade, levando a confusões e até a violência simbólica ou literal.
Esse fenômeno não é novo, mas a pulverização das redes sociais como plataformas de debate intensificou sua presença. Agora, com um simples toque, discursos polarizados se espalham rapidamente, alimentando bolhas de desinformação e radicalismo. Não é incomum que acusações, insultos e até ofensas surjam de uma lógica binária, onde uma pessoa é automaticamente encaixada em um lado oposto simplesmente por criticar ou questionar algo. O pensamento binário não reconhece a possibilidade de alguém ser crítico de um aspecto sem necessariamente defender o lado oposto.
O maniqueísmo não é uma característica inerente de pessoas pouco instruídas ou mal-intencionadas. Ele pode surgir em qualquer um de nós quando evitamos a reflexão profunda e optamos pelo caminho mais fácil da simplificação. Como alertava Umberto Eco, o problema não é a "imbecilidade", mas o empobrecimento do pensamento que rejeita qualquer tipo de ambiguidade, que foge de paradoxos e nuances. A complexidade assusta, e a resposta simplista, dividida entre heróis e vilões, oferece uma sensação enganosa de segurança moral.
Um exemplo claro dessa distorção é a crença de que criticar um partido, figura pública ou medida específica significa automaticamente apoiar o "inimigo". Essa lógica reducionista ignora que pessoas podem ter opiniões complexas e multifacetadas. Ela prefere a percepção superficial à reflexão cuidadosa. Para o pensamento binário, se você não concorda plenamente com "meu lado", então você está "do lado oposto". Ele não permite que se seja a favor de alguns pontos de uma questão e crítico de outros ao mesmo tempo – essa possibilidade é rejeitada porque o paradoxo desafia a rigidez desse raciocínio.
Esse pensamento não se restringe ao ambiente digital. No mundo atual, estamos vendo uma polarização crescente, alimentada por discursos de ódio que se multiplicam nas arenas políticas, sociais e culturais. As redes sociais amplificam essas tensões, mas elas já existiam muito antes da era digital. O problema é que, hoje, a rapidez com que essas ideias circulam e ganham adesão cria um ciclo perigoso de radicalização e intransigência. O debate público perde espaço para o confronto, onde não há interesse em entender a complexidade dos problemas, mas apenas em ganhar uma batalha moral.
Os discursos de ódio que proliferam nesse cenário maniqueísta são sintomáticos de uma sociedade que tem dificuldades em lidar com a divergência. Ao invés de acolher a pluralidade de perspectivas, o pensamento binário tenta encaixar todas as questões em categorias fixas e imutáveis. Ele recusa a análise crítica, foge da hermenêutica e evita o simbólico, pois esses aspectos exigem esforço intelectual e disposição para a autocrítica. E, quando desafiado, esse tipo de pensamento muitas vezes responde com agressividade, acusando o outro de deslealdade ou imoralidade.

O resultado disso é que as discussões acabam se tornando guerras de posição, onde as pessoas são rotuladas e colocadas em caixas conforme suas opiniões se desviam minimamente do esperado. Se alguém critica um líder político que você apoia, por exemplo, o pensamento binário imediatamente rotula essa pessoa como pertencente ao "grupo inimigo", sem considerar que ela pode ter uma visão mais complexa e equilibrada. Nesse contexto, o respeito à divergência e ao contraditório se perde, e o espaço para debates saudáveis se reduz.
Porém, é importante lembrar que o pensamento binário pode ser superado. Todos nós, em algum momento, caímos na armadilha de simplificar questões complexas para torná-las mais fáceis de lidar. No entanto, o crescimento pessoal e intelectual passa por uma disposição constante de desconstruir essas certezas rígidas, de abandonar os juízos morais apressados e de abrir-se para a ambiguidade que a vida apresenta. Estudar, refletir e permitir-se questionar as próprias posições são ferramentas poderosas contra o maniqueísmo.
É urgente compreender que a realidade não é feita de opostos absolutos. A complexidade é a essência das relações humanas, da política, da sociedade. Quanto mais nos distanciamos desse pensamento binário, mais conseguimos enxergar as múltiplas camadas que compõem cada questão e, assim, construir uma convivência mais tolerante, democrática e saudável. Somente ao superar o maniqueísmo seremos capazes de enfrentar, de forma efetiva, as crises e divisões que ameaçam o tecido social.
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